INFLUÊNCIAS DO ILUMINISMO SOBRE A TEOLOGIA



1.      INTRODUÇÃO

            “A falsa filosofia é sempre fonte de errôneas teologias”[1]. Embora o Iluminismo surja por uma boa intenção de romper com a “idade das trevas”, o mesmo, ao decorrer do tempo, abre uma grande porta para ensinamentos a versos as Escrituras.
            Primeiro ponto importante, que se deve ter em mente, é que o liberalismo teológico não é um evento isolado na história, contudo, ele acontece em um contexto marcado e influenciado pelo Iluminismo. O Séc. XVIII é marcado pelo Iluminismo (e, por isso, pelo Racionalismo). Tanto o Pietismo como o Liberalismo foram uma reação ao Racionalismo do Séc. XVIII. Assim, não convém confundir racionalismo, iluminismo e hegelianismo com liberalismo, pois seria semelhante a dizer que tangerina, limão e laranja são uma e a mesma coisa.

2.      INFLUENCIAS

O pensamento iluminista exerceu influencia contundente sobre o liberalismo teológico, especialmente nas seguintes áreas:

a.      HISTORICISMO

Este termo foi provavelmente criado por Navolis, alemão, (1772-1801) que pode ser definido como a doutrina ou a visão do desenvolvimento histórico que obedecem as leis incondicionais de sucessão que dão a história uma direção ou um sentido.
            Os cânones da história científica foram cada vez mais elaborados, objetivando uma maior exatidão. Este esforço não tardou em promover um contínuo questionar da integridade e credibilidade das narrativas históricas das Sagradas Escrituras[2].
            Ramm diz que “quando o historicismo é aplicado a história de Israel, a vida de Cristo e à história da igreja cristã registrada no Livro de atos, todo o normativo, único ou sobrenatural é dissolvido”[3]

b.      CIENTIFICISMO

Com Galileu a ciência deu um grande salto contribuindo de modo decisório para a sua especialização. Com isto, criou-se uma grande fé na ciência, entendo que ela poderia por si só apresentar respostas “verídicas” para todas as áreas da existência, em especial, as áreas do saber. Por estão razão tal ciência ganhou a palavra final em uma disputa.
            Os estudiosos observam que dentro deste espírito, quando a ciência entra em choque com as Escrituras Sagradas, a Escritura é descartada:

Para a mentalidade do iluminismo (...) onde as antigas escrituras entram em conflito com a ciência moderna – a geologia, a astronomia, e a biologia em especial – então a Escritura deve ceder lugar à ciência. Sempre que a Escritura retrata o universo de modo contrário ao conceito mundial do cientismo ou descreve os eventos que são sobrenaturais, o homem moderno deve escolher a ciência em preferência à Escritura[4]


c.       SUBJETIVISMO RELIGIOSO

Sob influencia do iluminismo o liberalismo teológico encontrou espaço para duas vertentes do subjetivismo: (1) a minha razão individual como critério de verdade ou (2) a minha experiência mística. Ambos derivam de algo estranho às Escrituras e à sua fonte de autoridade, elegendo um novo padrão[5].
            Kant é colocado entre aqueles que tornaram a religião subjetiva elegendo a razão como critério final de verdade (ainda que a mente humana seja limitada).
            Kierkegaard (1813-1855) e F. D. E. Schleiermacher (Ixlaemarar) (1768-1834 - foi pregador em Berlim na Igreja da Trindade e professor de Filosofia e Teologia. Traduziu as obras de Platão para o alemão. Foi influenciado por Kant), conhecido como o “pai da teologia protestante liberal”, são colocados no subjetivismo místico. Não satisfeito com a educação religiosa, Schleiermacher colocou toda a sua epistemologia religiosa em termos de “Sentimento (ou senso)” de absoluta dependência.
            Portanto, toda a nossa compreensão a respeito de Deus estará previamente determinada por esta premissa: sentimento. Sendo assim, a sua teologia sistemática não consiste no estudo da revelação de Deus, antes é uma elaboração subjetivista.
            Neste espírito a religião passou a ser considerada um assunto de cada um, este é um assunto privado, a certeza tornou-se subjetiva, respaldando na experiência individual, quer por via racional ou mística.

d.      ANTROPOCENTRISMO

            O iluminismo, na expressão de Blackham, é “a idéia de ouro do humanismo”[6]. Neste sentido, esperava-se que a teologia promovesse o bem-estar humano, e para tanto, procurava-se harmonizar a verdade teológica com os princípios racionais geralmente aceitos.
            Por esta razão o valor de Deus passou a estar relacionado a uma utilidade egocêntrica. Na abordagem teológica, os alvos eram relativos a este mundo: felicidade terrena, moralidade racional e outros.
            William James (1842-1910), que é considerado o fundador do pragmatismo, influenciado por tal corrente, mostra que Deus tem valor se o seu conceito traz algum benefício para o homem:

Se as idéias teológicas provam que têm valor para a vida concreta, são verdadeiras, pois o pragmatismo as aceita, no sentido de serem boas para tanto. O quanto serão verdadeiras dependerá inteiramente de suas relações com as demais verdades, que têm, tembém, de ser reconhecidas”[7]


e.       RACIONALISMO

            O iluminismo influenciou o surgimento do racionalismo, que por sua vez influencia a teologia.
            A teologia se torna dependente da filosofia, pois, as doutrinas que ofendem a razão em qualquer de suas funções devem ser eliminadas por serem tópicos inviáveis nesta nova teologia.
            Por tanto, a razão não é mais sujeita as Escrituras, pelo contrário, passou a justificar a revelação perante o tribunal da razão. A razão humana passa a ser a medida de todas as coisas.

f.       TOLERACIONISMO

            Com as descobertas de novas culturas e suas religiões, tentou-se fazer do cristianismo apenas mais uma religião, sendo produto do gênio humano. Com os estudos das novas religiões descobertas, passou-se a analisar, comparando-as com o cristianismo e fazendo as suas  ponte de ligações.
            A conclusão de tudo isto é que nenhuma religião pode reivindicar a verdade total na presença das outras religiões. Portanto em questões de religião, a tolerância é a virtude suprema.
            As implicações desta concepção nos conduz ao ecumenismo de todas as religiões, procurando o que cada uma tem de bom.
            A este respeito Hermisten Maia comenta:

Este tipo de aproximação metodológica acarretava o fim de uma teologia vigorosa e forte, caracterizando-se por um desvio do estudo bíblico e teológico para uma abordagem apenas histórica; o ecumenismo decreta, de forma explícita ou não, o fim da voz profética de uma igreja, tendo como critério avaliativo apenas o que promove a “unidade”, ainda que em detrimento da verdade. Esquecendo-se de que a genuína unidade é produzida pelo Espírito[8]

g.      OTIMISMO

            Junto ao antropocentrismo, encontramos, como decorrência, uma antropologia vitoriosa, otimista, inteiramente confiante na capacidade humana.
            A mentalidade do Iluminismo já não acreditava na doutrina do pecado original; ela é relegada ao esquecimento, sendo considerada uma crendice ultrapassada. O progresso da humanidade, relacionado com o conhecimento da Psicologia e da Sociologia, significa que a raça humana está em plena ascensão. Deste modo não há mais lugar para doutrinas sombrias do homem e desta vida, tais como: carregar o fardo, tomar a cruz, negar-se a si mesmo, etc. Não pode pensar mais em depravação total.[9]

3.      LIBERALISMO E RELIGIÃO

Para o liberalismo religião é, pois, sentimento e este sentimento é universal, visto que o finito está perpassado pelo infinito. O raciocínio é o seguinte: Deus é considerado como presente, Ele perpassa tudo aquilo que é, pois, sem Deus nada se sustenta neste mundo (Ele é o firme fundamento de todas as coisas), e embora esteja presente no mundo, Ele o transcende. Surge algumas consequências deste pensamento:
Primeira, não existe nenhuma distinção entre "natural" e "sobrenatural", visto que tudo o que é está em Deus, sem o qual não seria, pois Deus é o fundamento do ser (daquilo que é, que existe, que se manifesta);
Segunda, Deus, no liberalismo, é a alma e o fundamento do mundo, não somente o Seu Criador; isso implica em que todas as realidades são epifanias (manifestações) de Deus. Terceira, somando-se os dois princípios temos a revelação natural: não somente alguns poucos eventos são reveladores de Deus, mas todo o universo. Quarta, assim, a história é a manifestação, a revelação de Deus: nela mostra-se o desígnio e a vontade de Deus (cf. Hegel: a historia é a encarnação do Espírito - que para Hegel era o Espírito Santo). Quinta, historia, estética, moral universal, dentre outras realidade, mostram Deus, bem como a razão humana. Sexta, ora, se Deus revela-se no natural, pela razão pode-se chegar a Deus: verdade racional, beleza estética, virtude moral são manifestações de Deus (isso chega muito perto do puritanismo que julga que a moral revela ou mostra a salvação!). Sétima, assim crê o liberalismo que existe uma espécie de religião universal, visto que o sentimento religioso é universal (apanágio do espírito humano). Oitava, religião é sentimento que se mostra na superioridade da moral cristã: prática de boas obras e de vida piedosa manifesta o sentimento mais elevado e mais puro do ser humano. Nona, razão por que acreditam os liberais que a prática correta (boa moral) revela uma boa confissão de fé (o que é a mesma tese do puritanismo e do pietismo).
Paul Tillich (Teologia Sistemática,   editada em português pelas editoras Sinodal e Paulinas), que é teólogo liberal, quando questionado se o pensamento liberal não fazia um reducionismo panteísta em seu conceito de Deus disse: Eu não creio que este seja um pensamento panteísta, visto que não creio num pan-theismo, mas num pan-em-theos. Não é que tudo seja Deus, mas que Deus está em tudo!
L. Feuerbach tem um livro (editado em português pela editora Papirus) intitulado A Essência da do Cristianismo em que ele diz: A religião é a confissão aberta dos segredos íntimos, é o desvelar público da intimidade. Ou seja, a projeção deste sentimento universal que está no íntimo de todo o ser. Ele segue aqui a Schleiermacher que dizia que: consciência de Deus é devota auto-consciência (no estilo: conhece-te a ti mesmo). Saber-se absolutamente dependente é estar relacionado com Deus e, nesta autoconsciência imediata (não mediada) nada mais é do que conhecer o próprio ser do homem (do ser humano). Por isso não existe ateísmo para o liberalismo, pois tal assertiva seria negar-se. Todo o universo (e nele o ser humano) é dependente de Deus.
Vimos que no liberalismo o mundo é completa e absolutamente dependente de Deus, assim a doutrina da providência expressa estar o ser humano consciente de sua dependência da natureza: depender de Deus é depender da natureza, pois o que existe é somente o natural (e não o sobrenatural), onde Deus se expressa.


4.      CONSEQUENCIAS

A teologia natural, vendo o natural como esfera da revelação divina, não necessita, necessariamente, da Bíblia como revelação: ela é somente uma revelação, mas não a revelação de Deus; pecado, assim, não é a quebra da lei de Deus, mas ausência da consciência de Deus: não é uma questão de vontade, mas de sentimento, ou seja, não sentir-se absolutamente dependente de Deus.
Ora, se esta dependência é a expressão mais correta do ser humano, o pecado, no liberalismo, é a natureza humana não desenvolvida em sua totalidade, ou seja: ser plenamente humano é vencer o pecado; como, porém, o sentimento religioso (saber-se incompleto e dependente) é algo inerente à natureza humana, ser humano é ser espiritual, a inclinação natural do ser humano é inclinar-se para esta união com Deus; assim, a pessoa de Cristo exerce uma influência, na direção desta união, igual a qualquer outra (embora reconheçam que a de Cristo é superior, mas não única ou exclusiva na esfera espiritual); não importa o que Cristo fez (morte e ressurreição), mas como Jesus fez; sendo Ele a expressão maior do ser humano, importa não crer em Cristo, mas crer como Jesus, importa não fazer o que Ele mandou, mas fazer tal qual Ele fez; religião é, por assim dizer, não crença correta, mas prática piedosa correta: religião é o mesmo que moral (tese, com a qual, concordam os puritanos, ainda que com pressupostos diferentes); se Cristo é, assim, o protótipo da nova humanidade (novo homem) a Igreja só tem sentido se se fizer continuadora direta dessa prática.
Embora os liberais fossem fortes sistemáticos (teologicamente) pouco lhes importava a dogmática (que, aliás, rejeitavam, em tese). Os dogmas da fé não importam, mas o sentimento religioso.
Para eles a Bíblia, em si, não importa, embora, no Novo Testamento, haja elementos fundamentais deste espírito religioso universal, especialmente em Jesus (na sua prática).
Vê-se, com clareza, que o liberalismo iluminista (kantiano) e o liberalismo idealista (hegeliano), cada qual com sua ênfase especial, são, na verdade, o outro lado da moeda do puritanismo e do pietismo: ênfase no sentimento, ênfase na prática moral, ênfase na prática piedosa, desprezo relativo à instituição, valorização do espiritual como a expressão correta do que é ser humano.
Vê-se, ainda, que chamar neo-ortodoxos de liberais (que buscaram reafirmar os dogmas fundamentais da fé crista, em reação ao liberalismo e ao literalismo fundamentalista) é no mínimo injusto, incorreto, ou, o que é prior, aproveitar-se da ignorância de alguns para lançar preconceito sobre outros e dizer que limão, tangerina e laranja são uma e a mesma coisa!

CONCLUSÃO
Embora o Iluminismo surja por uma boa intenção de romper com a idade das trevas, o mesmo, ao decorrer do tempo, abre uma grande porta para ensinamentos a versos as Escrituras, e, certamente, lança bases para a teologia pós-moderna. Não podemos compreender as razões das variadas "teologias contemporâneas", sem antes exercer uma avaliação criteriosa de suas bases.
  

Pr. Otávio Campos


BIBLIOGRAFIA

MILLER, Ed. L. Teologias Contemporâneas. São Paulo: Vida Nova, 2011.

FLOURNOY, P.P. Revelações do Século 3º. 2 Ed. Rio de Janeiro: Centro Cristão de Literatura, 1965.

COSTAS, Hermisten M.P. Raízes da Teologia Contemporânea. São Paulo: Cultura Cristã, 2004.

Bernard L. Ramm. Diccionario de Teologia Contemporanea.

BLACKHAM, H.J. Objeções ao humanismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969.

JAMES, William; Pragmatismo. São Paulo: Abril Cultura, 1974.

MACHEN, J. G. Cristianismo e liberalismo, p.69




[1] FLOURNOY, P.P; Revelações do Século 3º. 2 Ed. Rio de Janeiro: Centro Cristão de Literatura, 1965. p. 71.
[2] COSTAS, Hermisten M.P; Raízes da Teologia Contemporânea. São Paulo: Cultura Cristã, 2004. p. 293.
[3] Historicismo: In: Bernard L. Ramm; Diccionario de Teologia Contemporanea. p. 66
[4] Cientificismo: In: Bernard L. Ramm; Diccionario de Teologia Contemporanea. p. 14
[5] COSTAS, Hermisten M.P; Raízes da Teologia Contemporânea. São Paulo: Cultura Cristã, 2004. p. 295.
[6] BLACKHAM, H.J; Objeções ao humanismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969. p. 5.
[7] JAMES, William; Pragmatismo. São Paulo: Abril Cultura, 1974. p. 19.
[8] COSTAS, Hermisten M.P; Raízes da Teologia Contemporânea. São Paulo: Cultura Cristã, 2004. p. 300.

[9] COSTAS, Hermisten M.P; Raízes da Teologia Contemporânea. São Paulo: Cultura Cristã, 2004. p. 300.

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